Monthly Archives: Abril 2008

Ligação

Tenho medo do dia em que me ligares, que me apanhes desprevenida, de cabelos no ar, pijama vestido, roupa interior e cara por lavar. Não vou acreditar que me estás a ligar, calculo que é uma alucinação, que o sol me anda a fazer mal, começo a procurar a lista de médicos da zona metropolitana do Porto, a ver se me tratam. Talvez devesse procurar um psicólogo, um psicanalista talvez, sentar-me no divã e confessar o meu medo do telemóvel, que ele toque, que veja no ecrã o teu nome. Arrepia-me pensar que o telefone vibre, se acenda a luzinha do ecrã, que o ouça ao longe na mesa do café e eu a forçar-me a não o atender. Eu a lutar com os meus dedos, os dedos a lutar contra mim, a ansiedade de carregar na tecla verde já gasta, a atropelar-me pelo corredor, a ver se fujo, a ver se corro, a ver se fico, a ver se parto e sem saber se devo atender.

Tenho medo do motivo porque me ligas, não sei se vais casar, se te esqueceste de alguma coisa cá em casa, talvez seja o quadro que compramos juntos na galeria em Barcelona, talvez tenhas levado um livro meu por acaso, se calhar estás doente ou a precisar de dinheiro, vais ter filhos?

Ligas-me e eu a tremer, com medo que seja para me humilhar, para ralhar comigo, para me chamares psicótica, para que a tua namorada me chame puta. Mas no fim de contas, espero e desejo que me ligues, e admitas os teus erros, que digas que me amas, que me queres, nem que seja no gravador de chamadas.

Falsidade

Julgas que me consegues distrair com esses beijos, com essas palavras suaves sussurradas ao ouvido? Não acredito que não me conheças, sou mais atenta do que podes julgar. Não te fixes na minha memória aparentemente fraca ou nas minhas distracções comuns, sou mais esperta do que imaginas.

– Gosto tanto de ti.

Sim, sim, também eu de ti, meu amor. Gosto tanto de ti e dessa mulher com quem te vi a passear na avenida há dois dias atrás, sim gosto tanto. Por acaso vi-vos, por acaso ia a passar na rua na hora errada certa e encontrei-te com ela. Nada de mais, pouco peito, muito rabo. Mas reparei foi em ti, reparei no sorriso embevecido com que a olhavas, com a intensidade com que lhe apertavas a mão, como se fosse ela fugir, com a delicadeza com que a guiavas por entre as pedras da calçada, com medo que os pés lhe tropeçassem.

– Sabes, acho que podíamos aproveitar o facto de estarmos aqui sozinhos…

Pois, eu também acho. Aproveitavas e contavas-me o que viste nela que eu não tenha. Talvez não tenha tanto rabo, mas tenho mais peito. Neste mesmo peito onde agora estás mergulhado e onde tocas. Anda diz-me lá, como consegues uma coisa dessas? Na rua, és um senhor que, delicadamente, transporta senhoras pelas pedras da calçada. Em casa, és um sedutor nato, que sabe acariciar uma mulher. Não julgues que me deixo levar assim, hei-de fazer-te ver que quero uma resposta. Talvez levantar-te o sobrolho, desta forma… assim. Que achas? Intimida-te?

– Passa-se alguma coisa?

Não, não se passa nada. Não desisto com facilidade, tenho de treinar mais a prática do sobrolho, ando fraca dos tendões, hei-de arranjar outra forma, hei-de ter coragem de te perguntar o que quero, de te pedir o nome da mulher (só por curiosidade), talvez pedir o contacto também (só por uma mera casualidade) e quem sabe a morada (que gosto muito de tocar às campainhas, coisas da juventude). Hei-de arranjar coragem de te resistir, de te pedir (levantando o sobrolho), que afastes essas manápulas do meu corpo, que não me toques dessa forma intensa, que por favor (fazendo talvez olhinhos) da próxima vez que andes comigo na rua (quando não estiveres ocupado com ela), possas guiar-me pelo passeio, de mão dada, apertando-me a mão, como se fosse fugir, tu com o olhar embevecido, com delicadeza nos gestos.

É que sabes, os sapatos que me compraste a semana passada não são o meu número. A princípio julguei que fosse um engano, mas depois vi-a na rua (não julgues que a vigiei), de sapatos iguais, vermelhos, de salto alto, mas esta sem o pé apertado, sem se trocar toda ao andar, sem tropeçar nas pedras da calçada e percebi que afinal, sabes bem aquilo que fazes. És um sedutor nato, já te disse? Sabes enrolar, sabes fazer esquecer as coisas mais importantes, sabes ocultar as verdades, sabes camuflar as mentiras….

Não sei se já te disse, mas acho que era capaz de me apaixonar por ti.

photo:// Lia Carvalho © 2008

Pensamento

– Gosto muito de ti.

Também gosto de ti. De qualquer forma, gosto de ti de forma quadrangular, rectangular e por vezes até circular. Gosto de ti moderadamente, de forma pausada e, em dias especiais, de forma apressada. Gosto de ti, de manhã ao acordar, durante o dia de sol e também quando chove.

– Fazes-me muita falta.

Somos dois. Dói-me a outra metade quando não estás, custa-me respirar na tua ausência, acho que tenho um sopro no coração quando me faltas. Apetece-me ir a correr bater-te à porta, tocar à tua campainha, gritar pelo teu nome e ver-te surgir novamente, com cara ainda de sono e a arrastar os pés pelo chão gelado.

– Nunca gostei assim de alguém.

Nem eu. Nunca soube o que era amar, até tu apareceres. Nunca soube o significado do amor, essa entidade abstracta de origem desconhecida, até surgires. Gosto de ti como nunca amei (nunca amei ninguém, sem seres tu), nem sei se te aplicas na categoria dos “alguéns”. Tu és tudo, não és alguém.

– Apetece-me beijar-te.

Vem ter comigo, dá-me a provar o teu sabor, deixa-me beber o teu aroma. Gosto dos teus lábios. A sério, gosto mesmo. Apetece-me beijar-te mesmo quando não estás, queria guardar-te os lábios numa caixinha, daquelas com laçarotes de cetim, para poder beijá-los quando quisesse.

– Deixas-me louca.

E tu a mim, nem sabes o quanto. Finjo um pouco, para não julgares que já nasceste ensinada, quando na verdade sabes mais que eu. Ensina-me novamente, deixa-me tocar-te em todas as extremidades, acho que ainda não percebi a lição. Dá-me a conhecer o teu corpo, que amanhã tenho aula de anatomia, a sério, vá deixa lá. Deixa-me louco, mais uma vez e outra e ainda mais uma.

– Amo-te.

Sim, eu também. Acho que isso diz tudo. Amo-te.

A Felicidade vive de coisas simples

O que significará a felicidade para muitos?
O mero exercício da busca incessante de um estado pacífico de coisas? Será a felicidade a mesma coisa que a paz?
Será a felicidade um estado ou um momento? Valerá a sua procura ou deveremos resumir essa mesma procura a cada dia aproveitarmos o que de melhor temos?
Todos procuram a felicidade. Uns nos bens materiais, outros na satisfação dos seus desejos. Há quem julgue que a pode sentir sozinho, que não a queira partilhar com outros.

    (Eu não concordo.)

Não pode a felicidade ser o simples ar que respiramos? Uma mão que te toca, que te acaricia?

    (Eu sou feliz.)

A minha felicidade resume-se a coisas simples. Amar cada dia mais a pessoa que está a meu lado, ser amado. Ouvir todos as manhãs um ensonado

– Amo-te

e conseguir crer que isso chama-se felicidade. Uma troca de olhares, numa fracção de segundos, sim, é felicidade. Um mero sorriso, de relance, correcto, chama-se felicidade.

    (Eu sou feliz.)

Sim, contigo, por ti, por nós, sou feliz. Realmente feliz como nunca antes, porque a felicidade vive de coisas simples.