Monthly Archives: Junho 2008

O amor é a solidão das multidões

– O amor é a solidão das multidões

disse-me ela, como se soubesse a verdade por detrás das coisas. E eu, convencido disso, amei-a como se fosse o homem mais solitário do mundo, como se fosse a única pessoa que teria forças para conseguir conter toda a sua energia.

Cansei-me. Sinto solidão, não sinto amor. Dizes-me que são a mesma coisa. Repetes

– O amor é a solidão das multidões

e eu não sei se hei-de acreditar, se devo consultar um dicionário, um prontuário, uma enciclopédia e folheá-los até encontrar a resposta, nem que para isso tenha de gastar as suas páginas.

Consomes-me. Consomes-me por dentro, as energias, uma espécie de turbilhão, de buraco negro que suga. Tornas-te uma espécie de predador de sentimentos, do amor…

(ou devo dizer solidão?)

Não. Já não sei o que é o amor, se devo saber, se é uma espécie de Santo Graal, se nele existe o sentido da vida, se existe vida além do amor (solidão, talvez).

Poderíamos fazer uma dissociação das palavras. Sim, porque a literatura é uma ciência. Dissociarmos o amor da solidão, não ter necessariamente de viver as duas conjuntamente, organizar as duas por estados ou géneros, multiplicarmos a intensidade da primeira e dividirmos a intensidade da segunda.

Meu amor, porque temos de viver em solidão? Não podemos apenas viver em amor? Talvez as multidões não devessem existir. Acho que é melhor dispersar.

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Vermute – III

Acho que é a isto que se chama começar de novo. Partir do princípio que nada se passou, que nunca antes te conheci, que não te conheço, fingir que tenho amnésia, que me esqueci do teu nome, dos teus vícios, pecados e erros.

– Como é mesmo o seu nome?

e fazer-me de tolo, como se nada se tivesse passado, como se nem sequer me tivesses chamado à atenção, como se nem tivesse reparado nesse teu vestido, no teu trejeito com a boca, da forma como bebes o teu vermute, como se ali estivesse o teu destino, como se alguém te falasse do fundo do copo, com voz melosa e te dissesse qualquer coisa, numa língua desconhecida.

– Luísa,

dirias. Um nome assim, dito de um modo simples, seco, repetitivo, morto, como se fizesses um frete, como se o teu nome fosse apenas um acessório do teu corpo. Acho que é isto, pôr uma pedra no assunto. Perguntar-te o teu nome, fazer uma pergunta, sem saber sequer a resposta, é esquecer-me de como é o teu acordar, de como escovas os dentes pela manhã, de como gostas do café, curto, comprido, com ou sem açúcar.

– Parece-me que a conheço,

sinto-me tentado a dizer. E depressa reparo que descuido o esquecimento, que me faço de amnésico, que a pedra já cá canta, que o passado já lá vai, águas passadas não movem moinhos. Calo-me, silencio os lábios com mais um cigarro no canto da boca, sinto-me tentado a desviar o olhar, a não ligar, a esquecer o que já disse, a bloquear as palavras que teimam sair em catadupa.

– Posso oferecer-lhe outra bebida?

– Já ofereceu…

– Sabe, sofro de amnésia.

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